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sábado, 6 de abril de 2013

Homilia da Páscoa de D. Manuel Clemente

Hoje, transcrevemos a homilia da Páscoa da Ressurreição do Senhor (de D. Manuel Clemente):



Sepulcro vazio, ou espaço oferecido à resposta crente

«Pedro entrou no sepulcro e viu as ligaduras no chão e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus, não com as ligaduras, mas enrolado à parte. Entrou também o outro discípulo que chegara primeiro ao sepulcro: viu e acreditou.»


Amados irmãos e irmãs, reunidos na Páscoa de Cristo: O trecho evangélico que acabámos de escutar, na sua aparente linearidade, contém quase tudo o que precisamos de aprender para “ver” pascalmente as coisas, como testemunhas da ressurreição de Cristo.

E bem precisamos desta visão novíssima das coisas, especialmente dos grandes “vazios” com que deparamos à nossa volta e em tantas vidas, material ou espiritualmente esvaziadas, ou nos dois sentidos ao mesmo tempo. Bem precisamos, para nos reanimarmos de outro Espírito e reencontrarmos Quem nos faça recomeçar – e recomeçar doutra maneira e a outra luz.

Quase tudo, de facto, poderemos “ver” à luz da Páscoa, mesmo sem precisarmos de recorrer à ornamentação que séculos de exercícios plásticos nos têm oferecido para ilustrar aquele momento único, que aliás ultrapassa qualquer representação possível.

Compreendemos a intenção dos artistas e agradecemos ao Deus que os inspira. Ainda assim, deixai-me dizer, que aprecio mais o que eles nos fazem adivinhar do que propriamente o que pretendem evidenciar. Como na boa literatura ou na boa música, que valem muito pelo que nos oferecem em letra e som, mas não valem menos pelo que nos deixam a ecoar na memória deslumbrada. Como na verdadeira amizade, que tanto se alegra com a presença como persevera – ou até se experimenta mais - na própria ausência.

Basicamente, tudo nos reconduz à surpresa daquele sepulcro vazio. De seguida, os evangelistas sugerem-nos as respostas encontradas para tal facto, que se condensam na presença nova do Ressuscitado no meio dos seus, traduzida pelas várias narrativas recolhidas.

Assim continua a ser hoje, se repetirmos ao nosso modo o que aqueles discípulos fizeram. Primeiro que tudo, se “corrermos juntos” ao sepulcro. Aqui estamos nós, muito mais do que dois e em idêntica manhã. Nisto mesmo figuramos a Igreja do mundo inteiro, que se apressa a procurar e servir o seu Senhor em tudo quanto O assinale, em qualquer tempo e espaço.

Escrevendo aos coríntios, São Paulo lembrava-lhes os atletas à conquista do prémio que só caberia ao mais veloz. Mas, se incitava à corrida, repartia cristãmente a vitória: «Não sabeis que os que correm no estádio correm todos, mas só um recebe o prémio? Correi, pois, assim, para o alcançardes. Os atletas impõem-se toda a espécie de privações: eles, para ganhar uma coroa corruptível; nós, porém, para ganhar uma coroa incorruptível» (1 Cor 9, 24-25).

Caríssimos irmãos, não desistamos de procurar o Senhor, correndo após Ele, para resumirmos a nossa vida do modo como o mesmo apóstolo resumiu a sua, pascalmente almejada: «Corro, para ver se o alcanço, já que fui alcançado por Cristo Jesus» (Fl 3, 12).

Aqui acorremos nós, em manhã de Páscoa, cada um por si ou com os seus, na Igreja de todos. Não deparamos com um espaço vazio, como aconteceu com os dois discípulos; mas, como eles, só podemos verificar os sinais duma existência que ultrapassa muito o que os nossos olhos geralmente captam.

Finalmente, como o discípulo predileto, “vemos e acreditamos”, ou seja, nos sinais da ausência entrevemos uma presença, precisamente a de Cristo, que preenche e transcende todos os vazios do mundo. E assim a ausência se transforma em oportunidade, para um vazio preenchido.

Fala-se do “discípulo predileto”, nome onde cabemos bem, preferindo Cristo a todos sem exceção. Mas tal predileção também há de ser nossa por Cristo, para mais rapidamente O reconhecermos, com a prontidão dum amor sem despiste.

Quando a pessoa de Jesus Cristo, como os Evangelhos no-lo descrevem e transmitem, é motivo constante da nossa lembrança e meditação, vai-nos preenchendo de tal modo a visão interior e contemplativa que mais facilmente se projeta em todo o espaço e circunstância.  Pois é bem dentro que desponta a luz...

Assim o podemos verificar em todos quantos experimentaram e exercitaram nas suas vidas a predileção de Jesus e a predileção por Jesus. E na relação viva com Ele, ressuscitam para um outro modo de viver, que já começa a ser divino (cf. 2 Pe 1, 4).

Um outro modo de viver, que é também outra maneira de ver. Com os colossenses, que facilmente divagavam em especulações ou coisas acessórias, Paulo insiste: «Tudo isto não é mais que uma sombra das coisas que hão de vir; a realidade é Cristo!» (Cl 2, 17).

Cristo em si mesmo, como se desprende da letra evangélica ou se recebe nas “espécies” eucarísticas. Cristo nos outros, como tantos o divisaram e ouviram no rosto e no clamor dos pobres, espaços “vazios” que só o amor preencherá – e urgentemente deve preencher.

Oiçamos Francisco de Assis, logo a abrir o seu Testamento: «Deus, nosso Senhor, quis dar a sua graça a mim, o irmão Francisco, para que eu começasse a fazer penitência; porque quando eu estava em pecados, parecia-me muito amargo dar com os olhos nos leprosos; mas o mesmo Senhor, um dia, me conduziu ao meio deles e com eles usei de misericórdia. E ao afastar-me deles, o que antes me parecera amargo, converteu-se para mim em doçura de alma e corpo».

De Camilo de Lélis, padroeiro dos doentes, dos moribundos e dos que os tratam, conta um seu companheiro: «Via nos enfermos a pessoa de Cristo com tão sentida emoção que muitas vezes quando lhes dava de comer, considerando-os em sua alma como seus “cristos”, chegava a pedir-lhes a graça e o perdão dos pecados. Por isso estava diante deles com tanto respeito como se estivesse realmente na presença do próprio Senhor» (Liturgia das Horas, 14 de julho).

E, podendo a multidão ser um deserto, também foi num comboio apinhado que Teresa de Calcutá “ouviu” Jesus, como ela própria contou: «Foi naquele comboio que [a 10 de setembro de 1946] ouvi um chamamento para abandonar tudo e O seguir para os bairros da lata – para O servir nos mais pobres de entre os pobres. […] Percebi que era a sua vontade e que tinha de O seguir. Não havia dúvida alguma de que seria uma obra dele» (Vem, se a minha luz, p. 57).

Irmãos e irmãs, nesta alegre e sofrida Páscoa de 2013: Como o “discípulo predileto”, acreditemos na presença do Ressuscitado, que nos espera nos vazios do mundo. À luz pascal, o aparente vazio é apenas espaço oferecido à nossa resposta crente. Tiremos toda a consequência prática da celebração que jubilosamente fazemos.



Sé do Porto, 31 de março de 2013

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