Páginas

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Homilia de Natal - 2012

Transcrevemos, abaixo, a homilia do Bispo do Porto, D. Manuel Clemente (quem sabe inspirado pela Missa do Galo na nossa Paróquia do Bonfim):




– Que em nós se repercuta e progrida o que aconteceu em Maria!

1. Amados irmãos, aqui reunidos na igreja catedral do Porto, ou, também connosco, pela rádio e a televisão, celebrando o Natal do Senhor:
É com plena alegria que vos saúdo a todos e a cada um, especialmente aos que estejam doentes ou sós, em dia como este que, apesar de tudo, de alegria pode ser, porque só alegria pode dar.
Entendamo-nos, porém, sobre a alegria do Natal, essa mesma que repassa as leituras, as orações e os cânticos desta quadra litúrgica. É uma alegria que de Deus parte e apenas Deus garante.

É por isso profunda e absolutamente transversal. Podemos senti-la aqui, em paz e boas condições exteriores. Mas sentem-na e testemunham-na também os irmãos nossos que celebram o Natal de 2012 em situações pesadas e gravosas, por falta de liberdade religiosa ou mesmo perseguições que sofrem, noutros lugares do mundo. Não esqueçamos que, no ano que está a terminar, o cristianismo foi a religião mais perseguida, segundo o relatório da Ajuda à Igreja que Sofre… E nem por isso deixam de celebrar o Natal, como quem se reconforta na certeza de não estar só, antes divinamente acompanhado.
Eu próprio o pude verificar na recente assembleia do Sínodo dos Bispos, da parte de alguns intervenientes, oriundos de países onde ser cristão não é nada fácil, exteriormente falando. Recordo um deles, do Próximo Oriente, que reagiu ao discurso dum colega europeu, exclamando algo assim: «Com todas as dificuldades e privações que desde há muito sofremos, parece que estamos melhor, animicamente melhor, do que vós na Europa!». E foi contagiante o entusiasmo de outros bispos, provenientes de territórios, como o Camboja, onde há pouco tudo parecia ter sido arrasado, que cristão ou religioso fosse…
Na verdade, a alegria que esta solenidade nos oferece é outra, muito mais certa e segura do que os efémeros surtos da nossa boa disposição – por mais que esta também conte, certamente conte.

2. Relembremos os trechos bíblicos de há pouco: Logo na primeira leitura, bradava o profeta: «Rompei em brados de alegria, ruínas de Jerusalém, porque o Senhor consola o seu povo!». Reparemos que é a “ruínas” que se dirige, não a uma cidade próspera e com gente conseguida… E a razão veio adiante: «Porque o Senhor consola o seu povo». Não que Deus os dispensasse, ou omitisse a colaboração; mas exatamente na medida em que se deixassem realmente “consolar”, que o mesmo é dizer “consolidar” por um Deus que nunca desiste de fazer e refazer caminho com a humanidade que Ele próprio sustenta.
No entanto, estimados irmãos, isto que pareceria fácil, revela-se particularmente difícil. Séculos e séculos de história bíblica – como se resumissem milénios inteiros de história mundial – comprovam negativamente a nossa dificuldade em fazer o que só aparentemente é mais fácil, ou mais óbvio. Refiro-me à nossa pouca disponibilidade para deixarmos que Deus seja realmente o nosso Deus, à nossa resistência em sermos segundos numa criação em que só Ele, de facto e de direito, pode ser primeiro. E é com muito pouca convicção que dizemos “Seja o que Deus quiser”, quando esperamos, isso sim, que Ele faça o que nós queremos de antemão que aconteça, mesmo com aquelas “boas intenções” que não enchem propriamente o céu… .
E assim vamos somando e somando projetos nossos, demasiadamente nossos, ideais até, onde a realidade nunca cabe, no tamanho grande que devia ter. E o que sobra insurge-se, trazendo-nos desilusões, que um maior realismo decerto evitaria. A autossuficiência - para não dizer o egocentrismo ou o egoísmo mais vulgar – é outro nome do irrealismo, a que o bíblico Qohélet chamou ilusão ou vaidade, destinada a esfumar-se no vazio que nunca deixa de ser.
A história faz-se com o Senhor dos tempos. Conta connosco, faz-nos quase concriadores com Ele, mas não se dispensa de ser Princípio, Fonte e Pai, para nos dar a vida que só Ele tem e oferece. A nós, infelizmente, custa muito e muitíssimo ser filhos, comportando-nos antes como pródigos e esbanjadores constantes de tudo o que só com Ele não se dissiparia por certo.

3. Nasceu Jesus no mundo, para nos ensinar a viver filialmente, como nele eternamente acontece. Lembrou-o há pouco a Epístola aos Hebreus, para que o entendêssemos por fim: «Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos Profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por seu Filho, a quem fez herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo…».
Irmãos caríssimos: Olhemos bem para Jesus, sigamo-lo do Natal à Páscoa, para nele renascermos como filhos de Deus, nossa verdadeira condição e mais garantida alegria. Aquela de que falava São Paulo aos filipenses, como agora nos fala a nós: «Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo vos digo: alegrai-vos! Que a vossa bondade seja conhecida por todos. O Senhor está próximo. Por nada vos deixeis inquietar…». E, versículos à frente, referindo-se a si mesmo: «Sei passar por privações, sei viver na abundância. […] De tudo sou capaz n’Aquele que me dá força» (Fl 4, 4-6.12-13).

De ontem para hoje, é em 2012 que estamos e como estamos. Poucos dirão que estamos bem, ou como gostaríamos de estar, falando em termos gerais, sociais, familiares, profissionais… Apesar de inegáveis esforços oficiais e particulares, as dificuldades atingem gravemente a sociedade portuguesa e outras sociedades também.
Não é este o lugar nem a ocasião para nos ocuparmos de assuntos que não são da nossa competência específica, ainda que devamos e queiramos participar responsavelmente na cidadania comum. Mas é lugar e ocasião para lembrarmos o que uma consciência “religiosa” propriamente dita nos garante, ou seja, que todo o problema humano tem um âmbito maior do que qualquer materialismo reduza; e só “filialmente” se resolve, abrindo-nos a um Deus que connosco fará «imensamente mais do que pedimos ou imaginamos, de acordo com o poder que eficazmente exerce em nós» (cf. Ef 3, 20).
Aliás, mesmo quando se adianta, de modo apenas racional e secular, que a presente situação não se ultrapassará fora duma ordem de princípios e valores em que verdadeiramente caibam “todos os homens e o homem todo”, já existe abertura a algo muito maior do que os interesses e desinteresses imediatos. Para nós, os crentes, esse algo é mais exatamente Alguém; e esse Alguém fez-se um de nós no Menino do Presépio, no Cristo do Evangelho inteiro, da alegre notícia que há de chegar a todos.

4. Ouvimos também, no texto proclamado, que «o Verbo fez-se carne e habitou entre nós». É a verdade central deste dia e o que mais importa reter. Não nos distraiamos da vida nem dos seus inegáveis problemas, imaginando “deuses”, ou desistindo dos homens. Escutemos autenticamente a Deus, como na verdade “falou” em Jesus seu Verbo, palavra dita e feita. E assim oferecida e patente, na humanidade que ganhou da Virgem Mãe e inteiramente compartilhou connosco, nas vicissitudes comuns de qualquer vida humana. Connosco, humanos como somos e divinos como havemos de ser, unidos a Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
Mais ainda, ou mais precisamente: Não há momento da vida - do nascer, ao crescer e ao morrer; da família aos amigos e às solidões; dos sonhos e da realidade que lhes resiste; dos êxitos fugazes às deceções sobrevindas -, nada que ficasse fora da encarnação do Verbo, onde Deus se disse e demonstrou absolutamente solidário e próximo de cada um de nós.
Mas, sendo esta a nossa alegria – precisamente a de nos sabermos e sentirmos tão acompanhados por um Deus que encarnou na nossa carne, para partilhar a nossa vida -, é também agora a nossa responsabilidade, diante de tantos males e problemas que afetam a sociedade que somos.
A resposta, vinda de Deus na encarnação do Verbo, é espiritual e íntima, de oração portanto. Problemas humanos são problemas divinos, como Jesus os enfrentou na união connosco e com o Pai. Vinte séculos de cristianismo demonstram bem – de Bento de Núrsia a Francisco de Assis ou Teresa de Calcutá – que grandes e positivos impactos sociais brotam de profundas vidas espirituais, outros tantos exercícios da filiação divina, que, “em Cristo”, tudo recebem do Pai para distribuir aos irmãos.
Mas essa mesma vida espiritual nos comunica a caridade divina - a absoluta solidariedade de Deus com a humanidade que Ele faz viver - e nos impele a multiplicados atos de inteligência, vontade e sensibilidade, em relação aos outros, especialmente os mais necessitados de corpo ou espírito. Proclamar a encarnação do Verbo, como esta solenidade o faz e a liturgia a celebra, requer da nossa parte a coerência grande com a ação libertadora de Deus, em relação a quanto oprima e apouque uma humanidade que Ele mesmo deseja realizada e feliz.

5. E não nos deixemos tolher pela magnitude dos problemas e a perplexidade que provocam. Para acolher a encarnação do Verbo e a continuarmos no mundo, também temos o exemplo garantido, da Anunciação a Maria ao que se seguiu depois e o Magnificat canta.
Grandes problemas eram então os de Israel, tão diferente estava, negativamente estava, do que outrora fora e do que as profecias indicavam para depois: terra pobre de gente pobre, nação submetida a um império estranho… E foi então que uma jovem de Nazaré da Galileia ouviu o que nunca ninguém ouvira, a propor-lhe o que ninguém pensaria: que deixasse nascer dela o próprio Deus feito homem, para poder ser, finalmente ser, o “Emanuel” (= Deus connosco).
Maria ainda adiantou um “Como será isso?”, mas para acabar dizendo: “Faça-se em mim segundo a tua palavra!”. Jesus nasceu e Deus pôde acontecer no mundo. Caríssimos irmãos, que celebramos o Natal de Cristo: É para hoje e é connosco esta lição também, face a tantos problemas que nos afligem, pessoal, familiar e socialmente. Não importa que sejam grandes, os problemas; é preciso que seja imensa a nossa fé, grandíssima a disponibilidade para dizermos “sim” a um Deus que quer continuar a viver connosco. Para isso requer a nossa inteligência, a nossa vontade, inteiramente repassadas pelas suas. E podemos concluir de 2000 anos de cristianismo que, com disponibilidade nossa, acontecerá o que deve acontecer no nosso pequeno ou vasto mundo e a partir de agora. Como semente que germina, como um pouco de fermento a levedar a massa. Neste sentido – e só neste essencial sentido – é verdade “ser Natal quando um homem quiser”.
Deixai-me concluir do modo mais prático e quase funcional: Neste mesmo dia e aí mesmo onde cada um esteja, olhai em redor, em casa, na vizinhança, ou onde poderdes chegar, do modo que seja; reparai em algo a fazer, alguém a ajudar, caso a resolver; não deixeis acabar o dia sem terdes feito algo nesse sentido, pouco que seja; amanhã mais um passo…E, com a humanidade vossa que assim lhe proporcionais, o Verbo de Deus atuará, soará e chegará aonde quer chegar. Repetidamente vos surpreendereis com o seu acontecer em vós e através de vós, em continuado Natal.
Este dia é belo demais para esperar outro ano. Tem de ser a verdade plena de vidas ao serviço da encarnação do Verbo. E dessa coincidência plena com a vontade de Deus, brotará a única alegria duradoura. – Que em nós se repercuta e progrida o que aconteceu em Maria!

Sé do Porto, Natal de 2012
+ Manuel Clemente

Sem comentários:

Enviar um comentário