Transcrevemos, abaixo, a homilia do Bispo do Porto, D. Manuel Clemente (quem sabe inspirado pela Missa do Galo na nossa Paróquia do Bonfim):
– Que em nós se repercuta e progrida o que aconteceu em Maria!
1.
Amados irmãos, aqui reunidos na igreja catedral do Porto, ou, também
connosco, pela rádio e a televisão, celebrando o Natal do Senhor:
É com plena alegria que vos saúdo a todos e a cada um, especialmente
aos que estejam doentes ou sós, em dia como este que, apesar de tudo, de
alegria pode ser, porque só alegria pode dar.
Entendamo-nos, porém, sobre a alegria do Natal, essa mesma que
repassa as leituras, as orações e os cânticos desta quadra litúrgica. É
uma alegria que de Deus parte e apenas Deus garante.
É por isso profunda e absolutamente transversal. Podemos senti-la
aqui, em paz e boas condições exteriores. Mas sentem-na e testemunham-na
também os irmãos nossos que celebram o Natal de 2012 em situações
pesadas e gravosas, por falta de liberdade religiosa ou mesmo
perseguições que sofrem, noutros lugares do mundo. Não esqueçamos que,
no ano que está a terminar, o cristianismo foi a religião mais
perseguida, segundo o relatório da Ajuda à Igreja que Sofre… E nem por
isso deixam de celebrar o Natal, como quem se reconforta na certeza de
não estar só, antes divinamente acompanhado.
Eu próprio o pude verificar na recente assembleia do Sínodo dos
Bispos, da parte de alguns intervenientes, oriundos de países onde ser
cristão não é nada fácil, exteriormente falando. Recordo um deles, do
Próximo Oriente, que reagiu ao discurso dum colega europeu, exclamando
algo assim: «Com todas as dificuldades e privações que desde há muito
sofremos, parece que estamos melhor, animicamente melhor, do que vós na
Europa!». E foi contagiante o entusiasmo de outros bispos, provenientes
de territórios, como o Camboja, onde há pouco tudo parecia ter sido
arrasado, que cristão ou religioso fosse…
Na verdade, a alegria que esta solenidade nos oferece é outra, muito
mais certa e segura do que os efémeros surtos da nossa boa disposição –
por mais que esta também conte, certamente conte.
2. Relembremos os trechos bíblicos de há pouco: Logo na primeira
leitura, bradava o profeta: «Rompei em brados de alegria, ruínas de
Jerusalém, porque o Senhor consola o seu povo!». Reparemos que é a
“ruínas” que se dirige, não a uma cidade próspera e com gente
conseguida… E a razão veio adiante: «Porque o Senhor consola o seu
povo». Não que Deus os dispensasse, ou omitisse a colaboração; mas
exatamente na medida em que se deixassem realmente “consolar”, que o
mesmo é dizer “consolidar” por um Deus que nunca desiste de fazer e
refazer caminho com a humanidade que Ele próprio sustenta.
No entanto, estimados irmãos, isto que pareceria fácil, revela-se
particularmente difícil. Séculos e séculos de história bíblica – como se
resumissem milénios inteiros de história mundial – comprovam
negativamente a nossa dificuldade em fazer o que só aparentemente é mais
fácil, ou mais óbvio. Refiro-me à nossa pouca disponibilidade para
deixarmos que Deus seja realmente o nosso Deus, à nossa resistência em
sermos segundos numa criação em que só Ele, de facto e de direito, pode
ser primeiro. E é com muito pouca convicção que dizemos “Seja o que Deus
quiser”, quando esperamos, isso sim, que Ele faça o que nós queremos de
antemão que aconteça, mesmo com aquelas “boas intenções” que não enchem
propriamente o céu… .
E assim vamos somando e somando projetos nossos, demasiadamente
nossos, ideais até, onde a realidade nunca cabe, no tamanho grande que
devia ter. E o que sobra insurge-se, trazendo-nos desilusões, que um
maior realismo decerto evitaria. A autossuficiência - para não dizer o
egocentrismo ou o egoísmo mais vulgar – é outro nome do irrealismo, a
que o bíblico Qohélet chamou ilusão ou vaidade, destinada a esfumar-se
no vazio que nunca deixa de ser.
A história faz-se com o Senhor dos tempos. Conta connosco, faz-nos
quase concriadores com Ele, mas não se dispensa de ser Princípio, Fonte e
Pai, para nos dar a vida que só Ele tem e oferece. A nós, infelizmente,
custa muito e muitíssimo ser filhos, comportando-nos antes como
pródigos e esbanjadores constantes de tudo o que só com Ele não se
dissiparia por certo.
3. Nasceu Jesus no mundo, para nos ensinar a viver filialmente, como nele eternamente acontece. Lembrou-o há pouco a Epístola aos Hebreus,
para que o entendêssemos por fim: «Muitas vezes e de muitos modos falou
Deus antigamente aos nossos pais, pelos Profetas. Nestes dias, que são
os últimos, falou-nos por seu Filho, a quem fez herdeiro de todas as
coisas e pelo qual também criou o universo…».
Irmãos caríssimos: Olhemos bem para Jesus, sigamo-lo do Natal à
Páscoa, para nele renascermos como filhos de Deus, nossa verdadeira
condição e mais garantida alegria. Aquela de que falava São Paulo aos
filipenses, como agora nos fala a nós: «Alegrai-vos sempre no Senhor! De
novo vos digo: alegrai-vos! Que a vossa bondade seja conhecida por
todos. O Senhor está próximo. Por nada vos deixeis inquietar…». E,
versículos à frente, referindo-se a si mesmo: «Sei passar por privações,
sei viver na abundância. […] De tudo sou capaz n’Aquele que me dá
força» (Fl 4, 4-6.12-13).
De ontem para hoje, é em 2012 que estamos e como estamos. Poucos
dirão que estamos bem, ou como gostaríamos de estar, falando em termos
gerais, sociais, familiares, profissionais… Apesar de inegáveis esforços
oficiais e particulares, as dificuldades atingem gravemente a sociedade
portuguesa e outras sociedades também.
Não é este o lugar nem a ocasião para nos ocuparmos de assuntos que
não são da nossa competência específica, ainda que devamos e queiramos
participar responsavelmente na cidadania comum. Mas é lugar e ocasião
para lembrarmos o que uma consciência “religiosa” propriamente dita nos
garante, ou seja, que todo o problema humano tem um âmbito maior do que
qualquer materialismo reduza; e só “filialmente” se resolve, abrindo-nos
a um Deus que connosco fará «imensamente mais do que pedimos ou
imaginamos, de acordo com o poder que eficazmente exerce em nós» (cf. Ef 3, 20).
Aliás, mesmo quando se adianta, de modo apenas racional e secular,
que a presente situação não se ultrapassará fora duma ordem de
princípios e valores em que verdadeiramente caibam “todos os homens e o
homem todo”, já existe abertura a algo muito maior do que os interesses e
desinteresses imediatos. Para nós, os crentes, esse algo é mais
exatamente Alguém; e esse Alguém fez-se um de nós no Menino do Presépio,
no Cristo do Evangelho inteiro, da alegre notícia que há de chegar a
todos.
4. Ouvimos também, no texto proclamado, que «o Verbo fez-se carne e
habitou entre nós». É a verdade central deste dia e o que mais importa
reter. Não nos distraiamos da vida nem dos seus inegáveis problemas,
imaginando “deuses”, ou desistindo dos homens. Escutemos autenticamente a
Deus, como na verdade “falou” em Jesus seu Verbo, palavra dita e feita.
E assim oferecida e patente, na humanidade que ganhou da Virgem Mãe e
inteiramente compartilhou connosco, nas vicissitudes comuns de qualquer
vida humana. Connosco, humanos como somos e divinos como havemos de ser,
unidos a Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
Mais ainda, ou mais precisamente: Não há momento da vida - do nascer,
ao crescer e ao morrer; da família aos amigos e às solidões; dos sonhos
e da realidade que lhes resiste; dos êxitos fugazes às deceções
sobrevindas -, nada que ficasse fora da encarnação do Verbo, onde Deus
se disse e demonstrou absolutamente solidário e próximo de cada um de
nós.
Mas, sendo esta a nossa alegria – precisamente a de nos sabermos e
sentirmos tão acompanhados por um Deus que encarnou na nossa carne, para
partilhar a nossa vida -, é também agora a nossa responsabilidade,
diante de tantos males e problemas que afetam a sociedade que somos.
A resposta, vinda de Deus na encarnação do Verbo, é espiritual e
íntima, de oração portanto. Problemas humanos são problemas divinos,
como Jesus os enfrentou na união connosco e com o Pai. Vinte séculos de
cristianismo demonstram bem – de Bento de Núrsia a Francisco de Assis ou
Teresa de Calcutá – que grandes e positivos impactos sociais brotam de
profundas vidas espirituais, outros tantos exercícios da filiação
divina, que, “em Cristo”, tudo recebem do Pai para distribuir aos
irmãos.
Mas essa mesma vida espiritual nos comunica a caridade divina - a
absoluta solidariedade de Deus com a humanidade que Ele faz viver - e
nos impele a multiplicados atos de inteligência, vontade e
sensibilidade, em relação aos outros, especialmente os mais necessitados
de corpo ou espírito. Proclamar a encarnação do Verbo, como esta
solenidade o faz e a liturgia a celebra, requer da nossa parte a
coerência grande com a ação libertadora de Deus, em relação a quanto
oprima e apouque uma humanidade que Ele mesmo deseja realizada e feliz.
5. E não nos deixemos tolher pela magnitude dos problemas e a
perplexidade que provocam. Para acolher a encarnação do Verbo e a
continuarmos no mundo, também temos o exemplo garantido, da Anunciação a
Maria ao que se seguiu depois e o Magnificat canta.
Grandes problemas eram então os de Israel, tão diferente estava,
negativamente estava, do que outrora fora e do que as profecias
indicavam para depois: terra pobre de gente pobre, nação submetida a um
império estranho… E foi então que uma jovem de Nazaré da Galileia ouviu o
que nunca ninguém ouvira, a propor-lhe o que ninguém pensaria: que
deixasse nascer dela o próprio Deus feito homem, para poder ser,
finalmente ser, o “Emanuel” (= Deus connosco).
Maria ainda adiantou um “Como será isso?”, mas para acabar dizendo:
“Faça-se em mim segundo a tua palavra!”. Jesus nasceu e Deus pôde
acontecer no mundo. Caríssimos irmãos, que celebramos o Natal de Cristo:
É para hoje e é connosco esta lição também, face a tantos problemas que
nos afligem, pessoal, familiar e socialmente. Não importa que sejam
grandes, os problemas; é preciso que seja imensa a nossa fé, grandíssima
a disponibilidade para dizermos “sim” a um Deus que quer continuar a
viver connosco. Para isso requer a nossa inteligência, a nossa vontade,
inteiramente repassadas pelas suas. E podemos concluir de 2000 anos de
cristianismo que, com disponibilidade nossa, acontecerá o que deve
acontecer no nosso pequeno ou vasto mundo e a partir de agora. Como
semente que germina, como um pouco de fermento a levedar a massa. Neste
sentido – e só neste essencial sentido – é verdade “ser Natal quando um
homem quiser”.
Deixai-me concluir do modo mais prático e quase funcional: Neste
mesmo dia e aí mesmo onde cada um esteja, olhai em redor, em casa, na
vizinhança, ou onde poderdes chegar, do modo que seja; reparai em algo a
fazer, alguém a ajudar, caso a resolver; não deixeis acabar o dia sem
terdes feito algo nesse sentido, pouco que seja; amanhã mais um passo…E,
com a humanidade vossa que assim lhe proporcionais, o Verbo de Deus
atuará, soará e chegará aonde quer chegar. Repetidamente vos
surpreendereis com o seu acontecer em vós e através de vós, em
continuado Natal.
Este dia é belo demais para esperar outro ano. Tem de ser a verdade
plena de vidas ao serviço da encarnação do Verbo. E dessa coincidência
plena com a vontade de Deus, brotará a única alegria duradoura. – Que em
nós se repercuta e progrida o que aconteceu em Maria!
Sé do Porto, Natal de 2012
+ Manuel Clemente
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